Basquetebol parou no tempo e precisa de ser resgatado
A CAPITÃ da Selecção Nacional Sénior Feminina de Basquetebol, Deolinda Ngulela, é uma das grandes referências da modalidade. Com mais de 20 anos de carreira, sete dos quais nos Estados Unidos da América (EUA), Ngulela é dos exemplos a seguir. Atleta de mão cheia e talvez a única que de todas gerações ao nível de basquetebol sénior feminino atingiu o estágio mais elevado, ao assumir na presente temporada o duplo papel de treinadora-jogadora pelo Costa do Sol, clube que acaba de abraçar.
Deolinda Ngulela está no basquetebol desde a infância, aos nove anos, por influência de vizinhos. A sua primeira equipa foi o extinto Banco Popular de Desenvolvimento (BPD), onde entrou nos escalões de formação. Passou pela Académica, onde ganhou o título de campeã africana de clubes, e pelo Desportivo, depois foi aos EUA para no regresso alinhar pela ex-Liga Muçulmana de Maputo, actualmente Liga Desportiva de Maputo. Inteligente e disciplinada, Deolinda Ngulela fala na presente entrevista do seu percurso e experiência como jogadora, da trajectória e dos sucessos alcançados no basquetebol, dos seus sonhos e do desejo de ver um dia a modalidade profissionalizada, o que passa, primeiro, pela formação, reestruturação e promoção do desporto escolar, tornando-o num movimento forte e regular com vista a alimentar a alta-competição. O papel do Governo é, segundo a entrevistada, crucial para a concretização deste objectivo, deixando a missão da profissionalização para os clubes, com o incremento da qualidade competitiva de modo a atrair cada vez mais o empresariado, visto que a matéria para o efeito estará disponível com os talentos que sairão do desporto escolar. Nas linhas que se seguem trazemos o pensamento da atleta sobre a modalidade, a visão sobre o futuro da modalidade, que, no seu entender, parou no tempo.
NOTÍCIAS (NOT) -Como é que olha para esta experiência de treinadora-jogadora. Já pensou assumir, um dia, este duplo papel?
Deolinda Ngulela (DN)- Dizer que não é uma situação fácil, principalmente no início, porque queres que as pessoas entendam a sua filosofia de trabalho. Então, estás a lidar com 15 cabeças com pensamentos diferentes a pensarem como tu queres, o que não é fácil. Primeiro, este grupo é novo, uma parte se conhece outra não. E para criar o hábito e confiança entre elas torna-se uma tarefa difícil. Sabia que não seria tarefa fácil mas resolvi aceitar o desafio; o desafio se calhar viesse de uma parte de ser só treinadora não sei se seria aliciante para mim como foi depois que colocaram a possibilidade de eu fazer as duas coisas. Não é fácil, mas não vejo por que não fazê-lo, então eis-me.
NOT -Como é que aceitou este desafio, foi de livre vontade ou teve alguma pressão ou encorajamento para alinhar nesta dupla missão?
DN - Primeiro fazer a correção. Tenho o nível I de formação como treinadora feita aqui em Moçambique sob tutela do senhor Nelson Isley. E para além disso tive dois anos de experiência nos Estados Unidos da América (EUA) como treinadora-adjunta de uma equipa de basquetebol. Então não foi uma decisão que veio ao acaso. Não sou a mais experiente, mais tenho um bocadinho de experiência de treinadora-jogadora. Mas não é fácil, pois os grupos de trabalho são completamente diferentes, as condições de trabalho também, mas mesmo assim decidi abraçar este desafio.
NOT -Houve alguma motivação ou pensava fazer a mesma coisa logo que terminar a carreira de jogadora?
DN-Muita gente, incluindo colegas, incentivava-me, dizendo que tenho dom. E foi para mim interessante porque quando esse convite chegou as minhas colegas que agora são minhas jogadoras já me haviam sugerido. Disseram que não viam a melhor pessoa se não eu, porque tenho características e dom para tal. Então, já havia essa motivação, mas eu nunca tinha levado a sério.
NOT -Nunca pensou um dia ser adjunta do seleccionador nacional Nazir Salé, sendo uma pessoa que sempre depositou uma forte confiança em ti?
DN- Isso não posso dizer, porque dependeria do convite dele. Mas havia este desejo de eu ser treinadora, fosse onde fosse, seja nos escalões de formação. Como adjunta dele não sei. Isso só ele pode dizer. Ele também sempre disse que eu daria uma boa treinadora.
NOT -E nesta primeira experiência, ou seja, nestes primeiros meses no Costa do Sol, qual é o sentimento que tem no contacto com jogadoras como treinadora e atleta. Quais são os resultados dessa experiência e como olhas para o futuro?
DN- Tenho jogado de vez em quando mas, como disse, fica um bocadinho difícil por causa do maior tempo que dedico ao treinamento. Gasto mais tempo a ensinar e supervisionar o ensinamento. Por isso pouco faço como atleta com o grupo, mas faço individualmente. Mas na medida que tenho a possibilidade de lá estar, por exemplo, num exercício no qual não tenha que intervir muito, ou seja, que elas dominam, estou com elas no campo e faço o papel à vontade.
NOT -Que resultados já registou desde que assumiu o comando técnico do Costa do Sol?
DN -Em seis jornadas, no Campeonato da Cidade, ganhei quatro jogos e perdi dois frente ao Ferroviário e A Politécnica.
NOT -Recentemente houve um “workshop” sobre treinamento em basquetebol, por sinal organizado por si, e pela primeira vez na história da modalidade. Qual era a finalidade?
DN- Penso que há necessidade de intercâmbio na área técnica ao nível do basquetebol. Penso que é momento de viragem, porque a modalidade está a tomar um rumo não desejável e nós temos a possibilidade de virá-lo. Em vez de apontar o dedo uns aos outros e pensar que quem deve fazer é este ou aquele, pensei que devemos ser nós os treinadores a tomar a iniciativa para melhorar a situação em que a modalidade se encontra hoje. Vejo que o que falta não é o querer, mas sim a ausência de diálogo e essa primeira sessão mostrou isso. As pessoas estão satisfeitas, querem dialogar e aprender umas das outras. Infelizmente não tem havido muitas sessões de formação, o que é uma das grandes preocupações que vamos ter em conta nos fóruns que se seguirão. E é uma das coisas que eu e a Associação Moçambicana de Treinadores de Basquetebol vamos abraçar para mudar a situação.
NOT - Então esta pode ter sido uma estratégia sua de querer colher a experiência de outros para poder consolidar os conhecimentos que tem nesta sua nova carreira de treinadora?!
DN- Eu sempre quis aprender dos outros. Aprende-se todos os dias, por mais que a gente esteja na modalidade há 15 ou 20 anos como jogadora ou treinadora. Há sempre um bocadinho do que podemos aprender dos outros. Então pensei, por que não podemos ter esse espaço, por que não podemos perguntar, por exemplo, ao outro treinador o que ele faz para a sua equipa ser ganhadora, para defender e atacar bem. O que devo fazer para superar estas dificuldades. É essa troca de experiências que deve haver. As pessoas às vezes transportam consigo alguns preconceitos ao pensar por exemplo que ele é meu adversário, a informação que for a dar pode prejudicar a minha equipa. No fundo temos jogadores diferentes e cada um tem as suas habilidades ou qualidades e pensa como pensa.
NOT -Quer também dizer que teve esta constatação de que há esta lacuna, ou seja, que existem treinadores sem formação suficiente para poder melhor lidar com esta área de treinamento?
DN- Exacto. E para dizer a verdade, o basquetebol é, em qualquer parte do mundo, considerado uma modalidade de elite. Mas felizmente nós temos aqui pessoas com muita vontade e disponibilidade, que dão todos os dias por este basquetebol, mas não têm a possibilidade de se formarem fora. São poucos os que têm a possibilidade de tirar o dinheiro do seu bolso para se formarem no estrangeiro. Não se ganha muito com o basquetebol e as pessoas têm que fazer trabalho extra e nem com esse trabalho extra conseguem ganhar o suficiente para poderem ter essas formações. É uma das grandes preocupações. Existem pessoas e vários treinadores que entram para lidar com a formação sem formação e sem possibilidades de meios próprios para fazer uma formação. Essa vai ser uma das minhas batalhas para tentar trazer pelo menos alguém que nos possa formar um ou mais treinadores ou formadores que possam vir aqui formar se possível a custo zero ou mediante pagamento simbólico.
ESTUDAR: CONDIÇÃO PRIMÁRIA PARA SER JOGADOR
NOT -Pode falar um pouco da sua experiência nos EUA, o tempo que ficou, em que equipas jogou, o que lá se faz que é diferente do que é feito aqui em Moçambique?
DN- Fui aos EUA pela mão de Nelson Isley, na altura seleccionador nacional (2003). Fiquei sete anos, dos quais joguei quatro. A diferença entre o que se faz lá e cá é abismal. Só para começar, o basquetebol é feito na escola e é levado muito a sério. O desporto é levado muito a sério quanto a escola. E uma das condições para praticares o desporto é estudar, partindo do pressuposto de que para se ser um bom jogador é preciso ter um pouco de escolaridade. Deve-se ter a mente a funcionar constantemente. Então, o nível é completamente diferente, não existem problemas de condições e de infra-estruturas. Há bolas, campos e equipas para jogarem a todos os níveis. Por isso a organização é completamente diferente.
NOT -Qual é o nível que se exige nos EUA para se ser treinador de basquetebol, seja universitário ou profissional, e qual a experiência que tiveste como treinadora-adjunta?
DN- Deve-se ter formação superior em Educação Física e obter os vários cursos para elevar o nível. Aliás, as pessoas vão aos cursos não necessariamente para obter formação, mas sim experiência. Porque eles têm uma abordagem completamente diferente. Se uma pessoa tem formação em Educação Física pode orientar uma equipa e vai ganhando experiência com o tempo e com o nível de competição que lá existe. E ganhei bastante experiência porque passei por tudo isso que lá é constantemente promovido.
FALTA PROACTIVIDADE EM MOÇAMBIQUE
NOT -Fora a formação, o que acha que falta no basquetebol moçambicano?
DN- Acho que falta a proactividade da nossa parte. Concordo que existem dificuldades. Dificuldades existem em todas áreas, mas temos que saber superá-las. Primeiro é saber trabalhar com o que temos. Se quisermos ter o melhor temos que primeiro fazer. Só assim podemos progredir. O basquetebol não tem exposição em Moçambique, mas também não temos boas equipas que nos permitam vender a imagem da modalidade. Se não tens qualidade como é possível trazer exposição? Há algum tempo perguntei ao Carlos Aik o que havia de diferente no passado comparativamente ao que existe na actualidade e ele disse uma coisa que é certa: a dedicação. Dedicação por parte dos treinadores e atletas. Eu não me lembro de ter faltado no meu tempo a um treino porque tinha exame, missa ou simples tosse. Hoje os atletas faltam ao treino por coisas insignificantes. Imagine eu como treinadora que às vezes não tenho tempo de planificação porque estou envolvida em várias actividades. Mas estou sempre à disposição para exercer as minhas tarefas. Tudo bem, os tempos são outros, mas sou de opinião que pelo facto de o mundo ter evoluído devíamos encarar as coisas com mais seriedade e outra abordagem. Hoje temos tecnologias extremamente avançadas. É possível ir à internet pesquisar qualquer coisa que queremos para elevar os nossos conhecimentos na área em que estamos envolvidos. Não vejo a dificuldade que um treinador teria para fazer, por exemplo, a sua planificação.
É PRECISO MUDAR DE ATITUDE
NOT -O amor à camisola parece ter ficado para trás. Hoje há tendência de fazer algo em troca de alguma coisa. O que tu pensas que, mesmo havendo necessidade de as pessoas (atletas/treinadores) serem renumeradas deviam fazer a bem do basquetebol ou do desporto no geral? Lembro-me que no passado não haviam estas condições que os jogadores e treinadores têm actualmente…
DN- Exacto, eu também passei por essa fase. Houve tempos que treinávamos de segunda a segunda e não tínhamos nenhuma renumeração, mesmo depois do jogo. Mas são tempos diferentes, não podemos negar as mudanças e uma das coisas que continua a acontecer no basquetebol é a falta de dedicação. O basquetebol parou no tempo. Hoje são os atletas e treinadores que exigem remuneração pelo trabalho que fazem, amanhã haverá outra mudança. Eu defendo que as mudanças devem ser ajustadas. Infelizmente é assim, há quem jogou por amor à camisola e deu tudo em troca de nada e hoje as pessoas são renumeradas e isso nem é mau. Claro que mudou o tempo de amor à camisola, mas vamos ajustar. Os clubes devem mudar de atitude e as mentalidades dos treinadores e atletas devem também mudar porque isso faz parte do progresso e com o tempo sempre acontecerão mudanças. Chegará a altura em que se dirá: não jogaremos sem que os clubes se profissionalizem. Os clubes e as pessoas devem se ajustar, pois só assim o desporto crescerá.
NOT -Fora a componente financeira, o que é que os clubes deviam fazer mais para tornar as suas equipas profissionais?
DN - Acho que não depende só dos clubes. Infelizmente isso tudo tem outra parte, que é a componente financeira, que pode não depender do clube, na impossibilidade deste se auto-sustentar. Tem a ver com patrocínios. Felizmente estamos numa fase em que estão a entrar no país muitos investidores e estão a surgir novas empresas. Se tivermos uma boa qualidade de jogadores, de competição, vamos poder fazer a exposição da modalidade. São as televisões que quererão filmar os jogos e as pessoas já terão vontade de assisti-los do que esperar pelos campeonatos africanos, como aconteceu no Afrobasket Maputo-2013, para fazer enchentes. É isso tudo que vai atrair os patrocinadores. É aí onde os clubes poderão aliciar os investidores, porque terão a capacidade de encher as bancadas. Então, é a combinação das duas coisas que fará a modalidade crescer, nomeadamente a qualidade do trabalho nos clubes e da competição e a parte financeira que virá com os patrocinadores. Uma das coisas que costumo questionar é: por que não fazemos o que todo o mundo faz actualmente, que é o desporto nas escolas cabendo aos clubes a profissionalização? Com que sustento não posso dizer mas se pudermos fazer isso aí o profissionalismo virá com mais facilidade. Porque a qualidade anda nas escolas, onde tens as crianças. Com um trabalho sério nas escolas teremos uma rotatividade constante de atletas e novos talentos aparecerão.
DEVE-SE PROMOVER O DESPORTO ESCOLAR
NOT -Então o desporto escolar, naquilo que é o figurino dos Jogos Desportivos Escolares, não chega a preencher o que estás a equacionar?
DN -Veja por exemplo o Basket Show. Se é possível encher a casa todos os fins-de-semana com este tipo de competição podemos ter um grande movimento de talentos. É por aí onde estou a tentar pegar: um movimento mais alargado e regular ao nível das escolas, onde teremos uma grande plateia. Porque são os meninos da escola que enchem os campos quando acontece o Basket Show ou os Jogos Escolares. Vamos ver como podemos fazer isso.
NOT -Estás a chamar à responsabilidade do Governo esse papel de ser a Educação, ou seja, o Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano a tomar a dianteira neste processo?
DN- Não necessariamente. Aqui há uma componente dupla. Eu acho que a Educação pode se aliar ao Ministério da Juventude e Desportos neste processo. Eles devem saber como fazer o casamento.
NOT -Qual é, no teu entender, o papel que o Governo deveria prestar ao desporto de modo geral para complementar, por exemplo, aquilo que é o papel de uma federação ou clube?
DN - Eu noto a disposição ou um bocadinho de mais entrega ou apoio quando se trata de selecções nacionais. Não conheço quais são os requisitos do Governo, ou seja, onde começa e termina a sua responsabilidade, assim como quando se trata de federação ou clube. Pelo menos ao nível de selecção temos tido apoio e não sei se é só este o papel do Governo e quais são os seus limites de intervenção. O que posso dizer, sem fundamentar, é que vejo muitas empresas a nascerem em Moçambique, várias fundações e cada vez mais investidores estrangeiros. Não sei como isso poderia ser viável, mas se alguém de direito pudesse dizer, aos empresários estrangeiros, por exemplo, que se quiserem montar as suas empresas no país devem, como uma das condições, apoiar o desporto desta ou daquela maneira já seria bom.
NOT -Podes falar da tua carreira, por que clubes passou e quantos títulos conquistou… e se ao abraçar a carreira de treinadora-jogadora estará a caminhar para o fim da sua carreira como atleta?
DN- Já não me ocorre na memória exactamente quando comecei a jogar, mas foi com oito ou nove anos, por aí ao fim da década 80 e princípios da de 90, por influência de vizinhos. O meu primeiro clube foi o ex-BPD (Banco Popular de Desenvolvimento), onde tive o primeiro e segundo anos de iniciação. O BPD era um clube federado e tinha a iniciação e uma equipa de seniores femininos na altura. De lá fui à Académica, onde saí em 2001 quando já era sénior e depois de ter ganho o meu primeiro Campeonato Africano. Da Académica fui ao Desportivo, onde fiz uma época apenas e depois fui jogar nos Estados Unidos, onde fiquei sete anos. Quando voltei entrei na Liga Muçulmana de Maputo e aqui joguei duas épocas, antes de passar para o Costa do Sol, minha actual equipa.
NOT -Quantos títulos nacionais conseguiu ao longo da sua carreira e quantos anos tem no basquetebol?
DN- Não me vêm à mente, mas maior parte deles foram no escalão sénior. Na formação não me lembro de ter ganho um. Foi na Académica, no Desportivo e na Liga Muçulmana que fui campeã. Tenho mais de 20 anos a praticar basquetebol.
NOT -O que significam para ti mais de 20 anos como atleta. Houve algo ao longo da carreira que te terá levado a pensar em desistir da prática da modalidade?
DN -O tempo passa tão depressa. Dizer que já passei por todas as fases, várias situações, portanto sou uma atleta completa e cheia de experiência. Nunca pensei em desistir, mesmo quando as situações não fossem favoráveis. Sempre encarei tudo como um desafio, olho para o basquetebol da mesma maneira que encaro a vida. As coisas nunca te vão ser fáceis ou entregues. Tens que buscar, ir à luta e procurar. Então, quando tu encontras um obstáculo não deves desfalecer, mas sim levantar e enfrentar. Para mim as coisas nem têm de vir fáceis. Devo ir buscá-las para dar mais valor. Até o próprio básquete deu-me isso e nunca tive motivo para desistência.
SALVADOR NHANTUMBO
Fonte:Jornal Noticias