SEMPRE igual a si, Artur Semedo relacionou o percurso brilhante da Liga Muçulmana à capacidade de aglutinar um plantel constituído por jogadores provenientes de culturas de diferentes clubes, associada à rápida assimilação dos processos que caracterizam o seu modelo de jogo. Artur Semedo vincou que a sua equipa foi superior em todos os aspectos e que, apesar de influências que por ventura possam ter havido, a Liga Muçulmana demonstrou dentro das quatro linhas ser a melhor equipa, facto que é justificado pela sua regularidade competitiva ao longo da época acompanhado por resultados positivos comparativamente aos naturais concorrentes ao título. Na entrevista que se segue, Artur Semedo fala dos contornos na luta pelo título, da influência da arbitragem e de outros agentes.
NOTÍCIAS (NOT) - A Liga Muçulmana entrou para o campeonato com jogadores maioritariamente vindos de vários clubes e alguns que transitaram da época passada. Notou-se no princípio da prova problemas de entrosamento. Como é que justifica o crescimento da Liga ao longo da competição até chegar ao título?
ARTUR SEMEDO (AS) - Esta situação de conviver com jogadores de culturas diferentes pressupõe, logo à partida, um conjunto de factores extremamente difíceis para podermos consolidar uma forma única de pensar o futebol na nossa perspectiva. Portanto, tivemos que pensar em exercer todo um processo de reformulação dos princípios do nosso treino que pudessem abranger a este vasto leque de jogadores para que pudéssemos rapidamente ter uma equipa com identidade própria e filosofia comum. Como se sabe, essas coisas não são feitas de um dia para o outro.
Mas, no caso vertente, tivemos um período breve de consolidação destes princípios porque a nossa tarefa enquanto técnicos foi, desde o princípio, treinar exaustivamente os princípios do nosso modelo de jogo e o que aconteceu durante a preparação foi uma resposta positiva a estes métodos novos de trabalho. Tivemos a felicidade e a sorte de podermos criar um plantel que rapidamente criou uma empatia com a equipa técnica, apesar das naturais discrepâncias que surgem quando uma equipa tem simultaneamente um novo treinador e muitos jogadores que vêm doutros clubes.
NOT – A presença de jogadores de culturas de clubes diferentes não chegou a criar algumas dúvidas em relação à luta pela conquista do título?
AS – O desejo de ser campeão foi pronunciado antes mesmo de iniciarmos o trabalho. Eu disse bem alto que a minha ambição era constituir uma equipa e lutar pelo título, mas a confiar nas capacidades e potencialidades do nosso trabalho e com o perfil de jogadores que tínhamos contratado. Felizmente conseguimos uma simbiose de valores de parte a parte para podermos consumar este desejo de lutar pelo título.
É claro que ressaltaram dúvidas pelo facto de termos encontrado alguns constrangimentos, uns de natureza competitiva e outros ainda maiores e exteriores à própria competição. Mas, se atendermos a natureza da própria competição, nós estávamos preparados para que esta empatia entre os jogadores e o treinador fosse rapidamente conseguida e foi naturalmente o que aconteceu.
NOT – A postura e cultura diferentes desses jogadores não chegaram de deixar dúvidas sobre aquilo que era a sua expectativa?
AS – A expectativa foi sempre de fazer o melhor possível embora no nosso país ainda não haja muito rigor, ou melhor ainda não se observam em rigor todos os critérios para a contratação de jogadores. Mas tivemos alguma razoabilidade para atender a contratação destes jogadores. Quero dizer que nós nos preocupamos em trazer jogadores que à partida nos davam a garantia de assimilação rápida dos nossos processos de jogo e felizmente conseguimos.
NOT – Quer dizer que foi correspondido o desejo de Artur Semedo de ter jogadores que pretendia?
AS – Sim, na sua esmagadora maioria foram jogadores que eu indiquei na perspectiva de a curto prazo, tal como aconteceu, termos uma equipa capaz de competir com os naturais concorrentes ao título em igualdade de circunstâncias e até superando-os. Foi isso que sucedeu e só posso dizer que me sinto feliz por ter errado pouco na indicação (contratação) de jogadores.
NOT – Tem incisivamente destacado o seu modelo de jogo. Fale-nos dele…
AS - Na verdade, o meu modelo de jogo é feito na forma como eu entendo o futebol e concebo os meus treinos e as metodologias de trabalho para um tipo de jogo que pretendo. E para isso recorro a diversos elementos e critérios: o perfil de jogadores que me interessam para que eu consiga optimizar aquilo que penso, as condições infra-estruturais e humanas que me são disponibilizadas, tudo isso para conseguir projectar no campo aquilo que são as minhas ideias. São naturalmente diferentes de todos os outros treinadores, mas a concepção desta filosofia está intrinsecamente ligada a mim.
É isto que tento fazer nas equipas que treino, dotá-las de princípios de jogo de acordo com o tipo de futebol que eu pretendo. Naturalmente tenho que escolher jogadores nesta perspectiva e é isso que com a pequena margem de erro consegui fazer.
É claro que chegando a um clube novo, como foi o caso, houve jogadores que transitaram por motivos contratuais e tive pouca margem de manobra para poder decidir sobre o seu afastamento ou continuidade. Tive, por essas razões, que considerar alguns aspectos e, por conseguinte, a margem de erro existiu e coube-me a tarefa de atenuá-la. Por isso tenho habitualmente dito que este não é o plantel ideal, mas possível.
NOT – Quer também dizer que encontrou na Liga as condições materiais e humanas suficientes para atingir este objectivo?
AS – Sim, e de alguma forma tive a oportunidade de me referir a esta circunstância de ter encontrado um clube que me ofereceu condições razoáveis de trabalho, quer de ponto de vista humano e infra-estrutural. Melhor do que qualquer outro clube, eu tinha à disposição um campo relvado em melhores condições e uma prontidão da direcção do clube de me elogiar. Sempre que solicitasse um jogador ou determinada ajuda a direcção reagia imediatamente. As condições materiais, embora não chegassem a níveis em que se encontram os clubes profissionais de outros patamares, foram aceitáveis para a nossa dimensão, dai que o nosso trabalho estava de alguma forma facilitado porque permitia ao treinador trabalhar com condições e um grau de probabilidade maior para o sucesso da equipa.
NOT – Sem as mesmas condições, Artur Semedo quase deu o título ao Desportivo na época passada. Aqui o que concorreu para que atingisse esse nível competitivo?
AS – Creio que a minha liderança teve uma importância primordial e o apoio dado pelo Desportivo contou para que tivéssemos sucesso. As condições materiais em nada ajudaram, porque treinar num campo com as condições que o Desportivo dispõe neste momento não eleva os níveis de qualidade duma equipa de futebol. Mas contei com recursos humanos e jogadores de um bom nível e ávidos de chegar a lugares de destaque no panorama futebolístico nacional.
Jogadores obcecados com o sucesso e com uma mentalidade ainda fértil e motivados. Isso contou para o sucesso que tivemos. Porém, houve factores externos na dinâmica do nosso trabalho que nos impediram de ser campeões. Tive a ocasião de me referir isto no fim do campeonato, embora as pessoas temem em não querer considerar aquilo que na verdade são factos concretos.
NOT – O suborno à arbitragem foi sempre considerado no processo de manobras de algumas equipas de contrariar a verdade desportiva. Está a referir-se aos árbitros?
AS – Também, em grande parte, e é bom que se comece a desmistificar esta questão de arbitragem. Todos nós sabemos que os árbitros têm uma importância considerável nas partidas de futebol. Só os leigos e os menos atentos não perceberão esta constatação. Portanto, a arbitragem tem influenciado muito na carreira das equipas para o sucesso e insucesso. Todos nós sabemos, mas muitas vezes não queremos reconhecer isso porque estamos afectos a determinados clubes.
Por outro lado, há outros factores que cada vez mais ganham espaço nesta dinâmica e correlação de forças no nosso futebol. Estou a falar de tráfico de influências que existe entre diversos agentes do nosso futebol. Este ano aconteceram casos que qualquer indivíduo atento pode perceber. Repare, por exemplo, aos castigos que foram aplicados a dois jogadores da Liga na véspera da ida para Vilankulo, sem que tivessem sido admoestados no jogo anterior. Isto porque houve influência de determinados agentes de outros clubes com a Liga Moçambicana de Futebol (LMF) e os dois jogadores foram suspensos.
Mas, num caso similar ou até pior, porque o jogador foi castigado num jogo tendo tido, salvo erro, dois cartões amarelos e, portanto, não poderia alinhar no jogo seguinte. Refiro-me a Soarito, que não sofreu nenhuma suspensão e continuou a jogar como se nada tivesse havido. E os Regulamentos, quer da LMF, quer da Federação Moçambicana de Futebol, que deviam ser uniformes, contemplam coisas diferentes.
Não consigo perceber se todos nós estamos sob a égide da FIFA e posteriormente da CAF, porque se estes Regulamentos estão na FMF não faz sentido que estas coisas estejam a ocorrer só por vontade de determinadas pessoas, sempre no atropelo às Leis e cometendo atrocidades para a própria competição. Portanto, se isso acontece como não teremos resultados falseados e arbitragens a influenciar as partidas?
NOT – Não exclui a hipótese de a Liga Muçulmana poder estar entre os agentes que trilham por esses caminhos, sem querer tirar o mérito pela conquista do título?
AS – Admito que eventualmente possa ter tido uma influência aqui ou ali. Nós estamos a falar de um sistema e nele há uma correlação de forças que não se sabe donde começa e onde termina. Há relações estranhas, isto é um labirinto entre vários agentes tal como eu disse. Mas uma coisa é certa e devo sublinhar: dentro das quatro linhas, independentemente de ter havido influência aqui ou ali, porque todos na verdade estão dentro disto, ninguém pode pôr em causa a capacidade competitiva da Liga Muçulmana.
A equipa foi clara e sistematicamente superior aos seus adversários em quase todos os jogos. Atacou mais e quase sempre jogou no meio-campo do adversário. Construiu inclusivamente quantidades industriais de situações de finalização. Ainda assim finalizou aquém das situações que criou. Pergunto eu, como é que uma equipa destas precisará de árbitros para ganhar jogos? Vamos atender aquilo que se passa no campo e depois tirarmos as considerações e ilações do que se passa fora das quatro linhas.
NOT – Nesta sua filosofia de trabalho os nomes não contam muito...!?
AS – Sim, repare que a Liga jogou com alguns nomes desconhecidos e jogadores que haviam sido esquecidos. Repare, por exemplo, antes de chegar ao Ferroviário de Maputo, o ponta-de-lança Chana era um jogador desconhecido e quem teve o condão de trazê-lo a este clube fui eu. Fui buscá-lo ao Ferroviário de Nampula e quase oferecido de borla. Fez épocas brilhantes no Ferroviário de Maputo mas quase se eclipsou desde a minha saída do comando técnico. Fui resgatá-lo, perdido por aí, e hoje está aí um Chana com outra ambição, alegria de jogar e outra capacidade. Talvez a minha liderança tenha o condão de fazer com que os jogadores se transmutem e passem para outro tipo de qualidade que não lhes é comum.
NOT – Agora o desafio são as Afrotaças. É esta Liga que Artur Semedo vai confiar para esta espinhosa missão. Qual é a ambição da equipa para esta competição?
AS – Como disse no princípio do ano antes de a época começar, este era o plantel possível para esta temporada. Se considerarmos que para o ano temos desafios acrescidos que exigem de nós maior responsabilidade, então teremos que reformular tudo o que fizemos este ano, requalificar de novo os nossos recursos para termos uma equipa mais competitiva e capaz de poder competir ao nível da CAF com maior dose de ambição para poder atingir patamares mais elevados do que aqueles que até hoje os nossos clubes atingiram. Ao nível internos vamos também jogar na defesa do título conquistado e isso requer cada vez mais da nossa parte empenhamento para ter uma equipa capaz de, jogado em duas frentes distintas, ser capaz de ter uma identidade própria e ambicionar em conquistar em cada uma destas frentes um lugar de destaque.
É isto que vou fazer, é uma luta terrível com constrangimentos naturais que vamos encontrar, porque o nosso calendário competitivo traz-nos algumas desvantagens, mas ainda sim vamos recorrer aos nossos recursos informacionais para poder atenuar estas atrocidades que vamos encontrar. Por outro lado teremos o “handcap” de simultaneamente termos que disputar o nosso campeonato nacional com jogos da Selecção Nacional à mistura, com paragens frequentes que a nossa competição interna ainda enferma para poder suplantar todos artifícios desnecessário e desfavoráveis à nossa equipa para podermos competir sempre ao nosso melhor nível.
NOT – Quais são as pretensões da Liga nas Afrotaças e as condições materiais impostas por Artur Semedo à direcção da Liga para se atingir o objectivo traçado?
AS – Vamos ter, como eu disse, que reformular o nosso plantel, vamos fazer aquisições para elevar os níveis de qualidade competitiva da equipa. Os níveis competitivos vão ter que subir se quisermos ter sucesso nesta competição. Faremos simultaneamente aquisições locais e vamos tentar trazer de fora um e outro jogador que seja um valor acrescentado para que disputemos, sobretudo a Liga dos Campeões, com o máximo de dignidade e maior responsabilidade que passa por chegar à fase de grupos.
Esta é a minha ambição. Não é fácil, não porque não tenhamos capacidade nem competência para fazê-lo, mas sobretudo porque partimos em desvantagem em relação aos outros concorrentes. Uma das grandes causas desta desvantagem é o poder institucional que os nossos agentes desportivos ao nível africano ainda não detêm de ponto de vista das competições africanas ao nível da CAF (Confederação Africana de Futebol). Quero dizer com isso que nós ainda somos olhados como um parente pobre deste continente ao nível desportivo, ainda que tenhamos algumas presenças nas competições da CAF, das quais somos precocemente afastados ao nível de clubes e da Selecção Nacional. Mas tudo isto ainda não é reconhecido pela CAF e pelo continente como uma autoridade. Portanto, nós temos que aumentar o nosso poder institucional através da Federação Moçambicana de Futebol (FMF) para poder projectar o país além-fronteiras como maior respeito.
NOT – Significa que temos que ter mais agentes junto da CAF e da FIFA?
AS – Não propriamente. O poder institucional do país além fronteiras… quer dizer que as pessoas têm de olhar para Moçambique com respeito e esse poder ainda não está projectado além-fronteiras. Isto faz com que as nossas equipas sejam olhadas com algum desprezo quando participam nas competições africanas e isso influi em quem deve decidir para passarmos para cada vez mais eliminatórias. Não porque não tenhamos competência ou qualidade em muitas circunstâncias, embora tenhamos neste capítulo também algumas lacunas, porque o nível competitivo do nosso campeonato não sendo muito forte, a calendarização do nosso campeonato que não está de acordo com os calendários da CAF, faz com que estas adversidades tenham que ser diminuídas do ponto de vista informativo dos treinadores.
E neste capítulo nós temos também estado atrasados. Portanto, são estes aspectos que fazem com que lamentamos cada vez mais a presença das nossas equipas e talvez da nossa selecção da CAF. Não conseguimos ainda entender que temos que modificar estes pilares que devem sustentar a competição, nomeadamente o que mencionei, o quadro competitivo e a calendarização que temos. Em fim, uma série de outros meios envolventes que põem em causa a consolidação da nossa capacidade além-fronteiras.
NOT – A Liga deverá iniciar as suas actividades da época que se avizinha tão cedo tendo em conta as Afrotaças. Já elaboraram com a direcção o programa de preparação e quais os nomes de jogadores disponíveis para reforçar a equipa?
AS - Alguns jogadores já foram projectados por mim e a direcção para poderem ser contratados. Só não sei ainda se essas aquisições foram consumadas ou se o momento é oportuno para a divulgação dessas contratações. A serem conseguidas essas contratações vão, de certeza absoluta, constituir uma mais-valia para os desafios que temos na nova época. São em número considerável e para preencher todos os sectores. Quero jogadores novos da baliza até ao ataque. Provavelmente ficarão no clube 50 porcento de jogadores que tivemos esta época.
NOT – Então teremos uma sangria significativa…
AS - Não será uma sangria tão evidente atendendo que o nosso plantel é pequeno (21 jogadores). Aliás, muito jogadores não serão dispensados, mas sim emprestados a outros clubes, porque têm uma margem de progressão enorme. Alguns deles até competiram esta época mas, como eu disse, para as frentes em que estaremos presentes neste momento precisamos de um plantel com um número razoável para competir sem receios e sem ferir a nossa dignidade. Vamos ter um plantel de 26 jogadores.
NOT – Quando é que efectivamente iniciam os trabalhos?
AS – Dia 13 de Dezembro faremos a apresentação e o esclarecimento sobre a época. Os exames médicos decorrerão nos dias 13 e 14 para, o mais tardar, iniciarmos os trabalhos no dia 15. Faremos também pausa para os jogadores passarem o fim-do-ano e retomaremos a 3 de Janeiro com estágio na África do Sul, em princípio, por ser próximo e dispor de clubes para competir connosco antes de partimos para a primeira eliminatória.
LIGA TEVE UM ASCENDENTE MAIS DINÂMICO E PROFUNDO